Carta do médico Pedro Saraiva,
enviada para o jornalista Luis Nassif e inicialmente reproduzida em seu blog
esclarece diversos pontos sobre a vinda dos médicos cubanos ao Brasil.
Olá Nassif, sou médico e gostaria
de opinar sobre a gritaria em relação à vinda dos médicos cubanos ao Brasil
Bom, como opinião inteligente se
constrói com o contraditório, vou tentar levantar aqui algumas informações
sobre a vinda de médicos cubanos para regiões pobres do Brasil que ainda não vi
serem abordadas.
- O principal motivo de
reclamação dos médicos, da imprensa e do CFM seria uma suposta validação
automática dos diplomas destes médicos cubanos, coisa que em momento algum foi
afirmado por qualquer membro do governo. Pelo contrário, o próprio ministro da
saúde, Alexandre Padilha, já disse que concorda que a contratação de médicos
estrangeiros deve seguir critérios de qualidade e responsabilidade
profissional. Portanto, o governo não anunciou que trará médicos cubanos
indiscriminadamente para o país. Isto é uma interpretação desonesta.
- Acho estranho o governo ter
falado em atrair médicos cubanos, portugueses e espanhóis, e a gritaria ser
somente em relação aos médicos cubanos. Será que somente os médicos cubanos
precisam revalidar diploma? Sou médico e vivo em Portugal, posso garantir que
nos últimos anos conheci médicos portugueses e espanhóis que tinham nível
técnico de sofrível para terrível. E olha que segundo a OMS, Espanha e Portugal
têm, respectivamente, o 6º e o 11º melhores sistemas de saúde do mundo (não
tarda a Troika dar um jeito nesse excesso de qualidade). Profissional ruim há
em todos os lugares e profissões. Do jeito que o discurso está focado nos
médicos de Cuba, parece que o problema real não é bem a revalidação do diploma,
mas sim puro preconceito.
- Portugal já importa médicos
cubanos desde 2009. Aqui também há dificuldade de convencer os médicos a ir
trabalhar em regiões mais longínquos, afastadas dos grandes centros. Os cubanos
vieram estimulados pelo governo, fizeram prova e foram aprovados em grande
maioria (mais à frente vou dar maiores detalhes deste fato). A população
aprovou a vinda dos cubanos, e em 2012, sob pressão popular, o governo
português renovou a parceria, com amplo apoio dos pacientes. Portanto, um dos
países com melhores resultados na área de saúde do mundo importa médicos
cubanos e a população aprova o seu trabalho.
Seria bem interessante que nossos
médicos se submetessem a este exame ao final do curso de medicina. Não seria
justo que os médicos brasileiros também só fossem autorizados a exercer
medicina se passassem no Valida? Se a preocupação é com a qualidade do profissional
que vai ser lançado no mercado de trabalho, o que importa se ele foi formado no
Brasil, em Cuba ou China? O CFM se diz tão preocupado com a qualidade do médico
cubano, mas não faz nada contra o grande negócio que se tornaram as faculdades
caça-níqueis de Medicina. No Brasil existe um exército de médicos de qualidade
pavorosa. Gente que não sabe a diferença entre esôfago e traqueia, como eu já
pude bem atestar. Porque tanto temor em relação à qualidade dos estrangeiros e
tanta complacência com os brasileiros?
REVALIDA
Não sei se todas as provas do
Revalida são assim, pois só assisti a uma, e mesmo assim parcialmente. Mas é
muito estranho os médicos cubanos terem alta taxa de aprovação em Portugal e
pouquíssimos passarem no Brasil. Outro número que chama a atenção é o fato de
mais de 10% dos médicos em atividade em Portugal serem estrangeiros. Na
Inglaterra são 40%. No Brasil esse número é menor que 1%. E vou logo avisando,
meu salário aqui não é maior do que dos meus colegas que ficaram no Brasil.
- Até agora não vi nem o CFM nem
a imprensa irem lá nas áreas mais carentes do Brasil perguntar o que a
população sem acesso à saúde acha de virem 6000 médicos cubanos para
atendê-los. Será que é melhor ficar sem médico do que ter médicos cubanos? É o
óbvio ululante que o ideal seria criar condições para que médicos brasileiros
se sentissem estimulados a ir trabalhar no interior. Mas em um país das
dimensões do Brasil e com a responsabilidade de tocar a medicina básica
pulverizada nas mãos de centenas de prefeitos, isso não vai ocorrer de uma hora
para outra. Na verdade, o governo até lançou nos últimos anos o Programa de
Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), que oferece salários
mensais de R$ 8 mil e pontos na progressão de carreira para os médicos que vão
para as periferias. O problema é que até hoje só 4 mil médicos aceitaram
participar do programa. Não é só salário, faltam condições de trabalho. O que
fazemos então? vamos pedir para os mais pobres aguentar mais alguns anos até
alguém conseguir transformar o SUS naquilo que todos desejam? Vira lá para a
criança com diarreia ou para a mãe grávida sem pré-natal e diz para ela segurar
as pontas sem médico, porque os médicos do sul e sudeste do Brasil, que não
querem ir para o interior, acham que essa história de trazer médico cubano vai
desvalorizar a medicina do Brasil.
- É bom lembrar que Cuba exporta
médicos para mais de 70 países. Os cubanos estão acostumados e aceitam
trabalhar em condições muito inferiores. Aliás, é nisso que eles são bons. Eles
fazem medicina preventiva em massa, que é muito mais barata, e com grandes
resultados. Durante o terremoto do Haiti, quem evitou uma catástrofe ainda
maior foram os médicos cubanos. Em poucas semanas os médicos dos países ricos
deram no pé e deixaram centenas de milhares de pessoas sem auxílio médico. Se
não fosse Cuba e seus médicos, haveria uma tragédia humanitária de proporções
dantescas. Até o New England Journal of Medicine, a revista mais respeitada de
medicina do mundo, fez há poucos meses um artigo sobre a medicina em Cuba. O
destaque vai exatamente para a capacidade do país em fazer medicina de qualidade
com recursos baixíssimos.
- Com muito menos recursos, a
medicina de Cuba dá um banho em resultados na medicina brasileira. É no mínimo
uma grande arrogância achar que os médicos cubanos não estão preparados para
praticar medicina básica aqui no Brasil. O CFM diz que a medicina de Cuba é de
má qualidade, mas não explica por que a saúde dos cubanos, como muito menos
recursos tecnológicos e com uma suposta inferioridade qualitativa, tem índices
de saúde infinitamente melhores que a do Brasil e semelhantes à avançada medicina
americana (dados da OMS).
Que venham os médicos cubanos,
que eles façam o Revalida, mas que eles sejam avaliados em relação àquilo que
se espera deles. Se os médicos ricos do sul maravilha não querem ir para o
interior, que continuem lutando por melhores condições de trabalho, que cobrem
dos governos em todas as esferas, não só da Federal, melhores condições de
carreia, mas que ao menos se sensibilizem com aqueles que não podem esperar
anos pela mudança do sistema, e aceitem de bom grado os colegas estrangeiros
que se dispõe a vir aqui salvar vidas.
Infelizmente até a classe médica
aderiu ao ativismo de Facebook. O cara lê a Veja ou O Globo, se revolta com o
governo, vai no Facebook, repete meia dúzia de clichês ou frases feitas e sente
que já exerceu sua cidadania. Enquanto isso, a população carente, que nem sabe
o que é Facebook morre à mingua, sem atendimento médico brasileiro ou cubano.
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