Rosivaldo Toscano dos Santos Junior - Juiz de Direito no Rio Grande do Norte. Nosso Rol Secreto de
Arrependimentos
Estava numa comarca do interior,
no início de carreira. Deparei-me com o caso de um acusado que, juntamente com
um desconhecido, ingressou numa padaria, anunciou um assalto, levou o dinheiro
do caixa e, durante a fuga, tomou a moto de uma mulher, fugindo em disparada. A
motocicleta foi largada um quilômetro depois.
A tese do Ministério Público era
de tinha havido dois roubos – o da padaria e o da moto, o chamado concurso
material de crimes. A tese da defesa era de crime continuado., em que se
condena por um só crime, com um pequeno aumento pelo segundo.
Quando fui fazer a sentença, veio
à cabeça uma dúvida não aventada pelas partes: se a moto foi subtraída com a
intenção de apenas garantir a fuga, já que ela foi encontrada intacta e
devolvida logo depois, seria justo condená-lo por isso? Não seria essa segunda
pretensa subtração caso de post factum impunível e que não foi levantada pela
defesa em razão do despreparo técnico do defensor dativo? Ou seria
arrependimento eficaz?
Ainda inexperiente e inseguro, faltou
coragem para rechaçar a pretensão do Ministério Público naquele momento, pois
temia um possível apelo e a reforma da sentença pelo tribunal, que tinha uma
linha muito dura nesses casos. Aí se deu meu erro: fui me aconselhar sobre a
existência do post factum impunível logo com quem? Com o amigo e combativo
promotor de justiça, que também chamamos de Parquet. Obviamente, como era parte
na causa ele reiterou sua tese e procurou rechaçar as teses de crime continuado
e de post factum impunível. Destacou que o acusado era reincidente e que também respondia por um
furto cujo interrogatório já estava aprazado.
Informalmente, e sem perceber,
aquele diálogo com o Parquet terminou
sendo mais importante para a formação de
um juízo sobre o destino da causa do que a leitura fria das razões das partes.
Um juiz deve perder tudo, menos a
isenção. Por dar tratamento privilegiado ao Parquet em relação à defesa, foi
exatamente isso que me aconteceu naquela tarde. Resultado: condenei o réu duas
horas depois, amparando na íntegra a tese do MP de dois roubos qualificados, a
uma pena de uns treze anos de reclusão.
O inconsciente, contudo, não me
absolveu. Algo estava fora do lugar. Procurei, no início, racionalizar e
justificar que aquele homem merecia a pena maior porque era degenerado. Mas
depois passei a sentir um certo desconforto ao pensar no caso nos dias que se
seguiram à assinatura da sentença. Ele foi crescendo. Até esperei um recurso da
defesa, mas ela silenciou. Houve o trânsito em julgado e, assim, a decisão se tornou
imutável. Não havia mais o que fazer. Logo depois me arrependi conscientemente
da decisão. A angústia era sintoma de que havia cometido um grave erro:
transigido com as minha próprias convicções. Senti a angústia em silêncio, na
solidão da toga.
Dias depois veio o interrogatório
do acusado no segundo processo que o envolvia. Era um furto cometido por ele na
mesma época. Confessou tudo. Encerrada a audiência, ele pediu humildemente para
falar comigo e disse, com olhos rasos d’água, exatamente o que eu não queria
ouvir:
- Doutor, o senhor cometeu uma
grande injustiça comigo naquele outro processo. O senhor me condenou por dois
roubos, mas só peguei a moto para fugir! Eu depois a larguei com a chave na
ignição.
Poderia ter me escondido por trás
de uma resposta fria e ratificadora da decisão já tomada. Até me veio isso.
Poderia simplesmente repetir os fundamentos do parquet. Mas não seria honesto
com ele.
Foi duro dizer, mas respondi:
- Você tem razão. Eu errei. Na
época não avaliei bem. Analisando melhor hoje, não o condenaria pelo roubo da
moto. E o pior é que não há nada a fazer em relação a esse caso. Já até estudei
uma revisão criminal. Seria uma espécie de reavaliação do seu caso. Mas nem
isso cabe porque embora concorde com você hoje, a tese do Promotor está
juridicamente embasada e só caberia uma revisão se fosse uma coisa absurda.
Eu sabia que quando respondesse à
primeira pergunta, seria fatalmente feita uma segunda. E já sabia até seu teor:
- Dá pra dar um jeito em relação
a essa acusação de agora? Sei que vou ser condenado de novo.
- Saiba que se fosse possível, o
faria, mas infelizmente não é possível compensar as penas. Cada caso é um caso.
Saiba também que irei carregar comigo essa culpa.
O leigo não percebe, mas a função de julgar é,
muitas vezes, indigna. Um ser repleto de imperfeições julgando o outro...
Foi duro, na posição de juiz,
admitir o erro para o próprio acusado, mas acho que ele merecia essa
consideração. Foi uma medida de respeito à sua individualidade. E essa abertura
para com o outro me permitiu tirar uma lição a partir desse caso: o juiz deve
sempre dar paridade de armas às partes.
Acho que essa experiência também
me fez um juiz muito mais reflexivo, isento e atencioso com as partes e com as
causas, respeitando as regras do jogo. A isonomia de tratamento das partes e a
cautela para evitar prejulgamentos são as bases que que alicerçam uma decisão
justa.
Agindo assim, diminuí, acredito,
a probabilidade de novos erros. Mas não há como evitá-los de maneira absoluta:
os tropeços fazem parte até mesmo das melhores trajetórias de vida.
Saibam: somente os juízes absolutamente
inexperientes não tem seu rol secreto de arrependimentos. E para alguns,
inconfessáveis até para si próprios.
É como digo na chamada do blog:
“Por trás da magnificência de uma
toga há, na essência, sempre, um homem, igual a qualquer outro, repleto de
anseios, angústias, esperanças e sonhos.”
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